#CearádeAtitudeEspecial – Maria do Carmo Serra Azul: ‘Tortura é uma tentativa de corrupção da alma’
23 de agosto de 2016 - 21:50 #Ceará #ditadura militar #história do Brasil #Maria do Carmo Serra Azul #Memória e Verdade #resistência #tortura
Na segunda matéria da série Ceará de Atitude, vamos contar a história da cearense Maria do Carmo Serra Azul, presa e torturada pela ditadura militar nos anos 1970. Às 22h de hoje, a TVC vai exibir o segundo mini-documentário do especial “Memória e Verdade”. A produção é uma parceria da Coordenadoria de Imprensa da Casa Civil e da Coordenadoria de Direitos Humanos, do Governo do Ceará, com a TVC
Detenção ilegal, tortura, execução, desaparecimento e ocultação de cadáver. A lista de crimes de Sérgio Paranhos Fleury, delegado da Polícia Civil de São Paulo que atuava no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), é das mais robustas da ditadura militar, como mostram os documentos da Comissão Nacional da Verdade. Conhecido pela violência e pela crueldade, era um dos homens mais temidos do período. Maria do Carmo Serra Azul, a Cacau, foi uma das vítimas do delegado. Nascida em Fortaleza, era tratada pela repressão como um dos “terroristas foragidos da maior importância”. Ela fazia parte da relação confidencial do Ministério do Exército que trazia nomes, apelidos, organizações políticas e informações do paradeiro do procurado.
O “reconhecimento” do regime não era à toa. A juventude de Cacau foi toda marcada pela luta contra a ditadura. Ela, que tinha 12 anos quando os militares tomaram o poder, aproximou-se do chamado “socialismo cristão” quando estudava no Colégio da Imaculada Conceição. Levada pela irmã Helena Serra Azul, começou a frequentar as reuniões da Juventude Estudantil Católica (JEC). Em 1967, as irmãs entraram para a Ação Popular (AP). No ano seguinte, Cacau pediu transferência para a Escola Normal. Naqueles anos, o Colégio Estadual Justiniano de Serpa era conhecido pela efervescência política. Foi lá que ela participou do que ficou conhecido como a “Revolta das Saias”. “O colégio, que era público, começou a cobrar taxas e a Mirtes (Nogueira), presidente do Grêmio, organizou um movimento pela devolução das taxas. Ela foi expulsa pela diretoria e o colégio explodiu. A diretora achou pouco e entregou Mirtes aos órgãos de segurança. Ela entrou na clandestinidade aos 16. Nesse período, a polícia entrava e reprimia as meninas aqui dentro da Escola. Eu mesma fui interrogada aqui”, lembra.
Daí para frente, a repressão foi fechando o cerco. Em 1968, com o Ato Institucional 5 (AI-5), lutar contra a ditadura ficou mais perigoso. “As manifestações eram reprimidas a bala. Então foi criada uma espécie de ‘segurança das manifestações’. O pessoal se armou porque não aceitava só ser agredido. Mas era uma luta muito desigual. Os americanos estavam do lado deles e, enquanto a gente lutava com molotov, eles tinham tanques de guerra”. Em 1971, Cacau caiu na clandestinidade. “Em 72, Gilberto Telmo, que era da direção da ALN (Ação Libertadora Nacional), foi preso. A partir daí, muita gente passou a ser presa e a desaparecer”. Ainda naquele ano, a polícia iria à casa de Maria do Carmo Serra Azul. “Fugi para a Praça do Ferreira. Eu estava com a minha irmã mais nova, de um ano, no colo. De lá, fui para a Aerolândia. A polícia foi até lá, mas como eles não sabiam da existência da minha irmã, não me reconheceram e voltei para casa. Minha irmã e meu cunhado estavam presos e fiquei com medo de torturarem os dois”. Os sequestros e a tortura já eram bastante conhecidos de Cacau. Anos antes, o namorado havia sido sequestrado e uma das irmãs havia sido presa e torturada. Ela estava grávida na época e o filho havia nascido com problemas neurológicos. “Me entreguei na 10a Região Militar. Fui recebida pelo coronel Veras e por militares de São Paulo”. Era a equipe do delegado Fleury. “O Fleury percorreu o país inteiro com um grupo do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna), formado por gente da Polícia Militar, da Polícia Civil, das Forças Armadas e do Esquadrão da Morte, que talvez nem fossem militares”, afirma.
“Imagina o tanto de
gente boa, inteligente, generosa
que morreu naquela época”.
Acompanhada do pai, Cacau foi levada para o 23 BC. “Meu pai também ficou detido e eles me diziam que iam torturá-lo se eu não falasse. Me botaram num carro e fui para um lugar próximo. Eles diziam que não eram do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica, eles diziam que estavam acima da lei e que ali era o inferno. Eu ouvia muitos gritos, choros, era surreal”. O interrogatório foi conduzido por Fleury. “Ele dizia que tinha matado o Marighella. Eu estava encapuzada, era um capuz pesado, e me faltava o ar”. Cacau passou por uma série de torturas: choque, afogamento, espancamento e “telefone” foram alguns deles. “Eles feriram meu seio com alicate. Começaram um estupro e não concluíram porque um deles mandou parar. Eles urravam ao meu redor. Até hoje eu lembro do cheiro daquele homem”.
Em uma das sessões de tortura, um médico foi chamado para reanimá-la. “Eles diziam: tá doendo? Eu dizia: tá não. Eles ficavam rindo. Eu sabia que o que eles queriam era ruim para mim. Eu nem reconheci minha própria foto”. Dias depois, eles levaram um depoimento que delatava integrantes da AP para que Cacau assinasse. Ela se recusou. “Em uma dos afogamentos, vi o rosto da minha irmã, que estava presa. Era como se eu enxergasse a minha irmã apesar do capuz que cobria minha cabeça. Eu sabia que não podia dizer nada. Ela simbolizava todos os outros, que eram filhos ou irmãos de alguém”.
Maria do Carmo sobreviveu à tortura e ao sofrimento de saber que o namorado (atual marido), as irmãs, os cunhados e até os sobrinhos foram vítimas do regime militar. “Eu nunca quis me render. Era o que eles queriam. Tem uma música da época que representa muito bem isso. Diz assim: você corta um verso, eu escrevo outro, você me prende vivo, eu escapo morto, de repente, olha eu de novo perturbando a paz, exigindo o troco”. A música, de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, virou uma espécie de hino da resistência e da guerrilha do Araguaia. “Pesadelo” é o nome.
Série Memória e Verdade Hoje (22), às 22h, na TVC Como sintonizar o sinal da TVC Transmissão Digital: canal 28 (Virtual 5.1) Transmissão Analógica: canal 5 Multiplay: canal 17 NET: canal 17 Vivo/GVT: canal 5 23.08.2016
Leia mais: #CearádeAtitudeEspecial – Três noites na Casa dos Horrores: a resistência de Valter Pinheiro
23.08.2016
Wania Caldas
Gestora de Célula / Conteúdo
Fotos: José Wagner / Governo do Ceará