Estudante de Santa Quitéria transforma a própria realidade pelo comprometimento social

5 de abril de 2019 - 17:14 # # # #

Bruno Mota Texto

“O jovem precisa ter curiosidade. Não pode se ater à zona de conforto, nem pensar que só porque vem de uma escola pública, ou de uma comunidade rural, não pode alcançar grandes conquistas. É preciso ver além, ser engajado e perceber o poder de mudança que tem nas mãos, independentemente das origens. Estou aqui para provar isso” – Rogério Bié

Uma inquietação interior move Antônio Rogério Bié de Moura a buscar novas experiências. Nascido em uma comunidade rural do município de Santa Quitéria, a vivência da realidade local não lhe bastava. Era preciso ir mais à frente, expandir os horizontes, fazer algo de diferente e de significativo. Numa procura obstinada por transformar a própria existência, tornou-se o primeiro da família a entrar na universidade. Aos 18 anos, também já acumula na bagagem a criação de um projeto de voluntariado e a participação no Programa Jovens Embaixadores, que lhe rendeu viagem de intercâmbio aos Estados Unidos em janeiro deste ano. Rogério concluiu o Ensino Médio em 2018, na Escola Estadual de Educação Profissional (EEEP) Monsenhor Luís Ximenes Freire.

Hoje estudante do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), o jovem fala com entusiasmo e espontaneidade sobre a própria trajetória. “Cresci no Assentamento Pintada, a 40 quilômetros da sede de Santa Quitéria. Era uma comunidade bem ‘do interior’ mesmo. Cresci na roça, cuidando dos animais. Naquele contexto, as pessoas não tinham grandes oportunidades de futuro”, observa, lembrando que viu muitos de seus colegas abandonando a escola por terem que optar entre o trabalho e os estudos, assim como, pela gravidez na adolescência.

“Muitos nem sabiam pra que ir à escola. Não havia sentido em estudar. E eu seria mais um desses, caso não tivesse descoberto na educação um recurso para enxergar mais longe”, diz Bié, que tem outros cinco irmãos, sendo três mais novos e duas mais velhas.

A aptidão pelo aprendizado, recorda, foi despertada aos 7 anos, quando encontrou um dicionário de inglês rasgado em casa, que havia pertencido a uma tia dele, e estava abandonado. “Nem sabia o que era, mas, comecei a ler. Aquilo, de alguma forma, acendeu a curiosidade em mim. Durante boa parte dos anos do Ensino Fundamental, eu me senti chamado a mudar aquela realidade de alguma forma, mas, não encontrei como fazer”, observa.

Seleção

As primeiras respostas começaram a surgir no ano de 2016, quando Rogério começaria o Ensino Médio. A etapa anterior havia sido feita na Escola Santa Edwirges, que tinha classes multisseriadas. Nesta forma de organização, o professor trabalha, na mesma sala de aula, com várias séries simultaneamente, atendendo alunos com idades e níveis de conhecimento diferentes.

“Deparei-me com a escolha: onde faria o Ensino Médio? Deveria continuar estudando em uma escola regular, na própria comunidade, por meio período? Ou deixaria a zona de conforto e iria para a escola profissional, que funcionava na cidade, em um novo mundo? Optei pela segunda alternativa, mas não tinha muita esperança de conseguir vaga. Então, ao ver o resultado da seleção, tive a surpresa: fiquei em 1º lugar. Foi a partir daí que a minha vida começou, realmente, a se transformar”, argumenta.

Quando iniciou na EEEP Monsenhor Luís Ximenes Freire, Rogério percebeu-se num campo fértil de descobertas, com novas pessoas e desafios. “Na primeira aula de informática básica, quando eu apenas tinha visto computador duas vezes na vida, já havia colegas que digitavam sem olhar para o teclado, enquanto eu tinha que olhar letra por letra, para conseguir escrever alguma coisa”, recapitula.

Saída do ninho

Para seguir na Escola Profissional, tendo aulas de 7h às 17h diariamente, morar no Assentamento Pintada tornou-se exaustivo para Rogério, que tinha de acordar antes das 5h para chegar pontualmente à unidade de ensino. Então, contando 15 anos de idade à época, decidiu ficar em casas de parentes, na sede de Santa Quitéria, longe dos pais na maior parte do tempo. “Até que fui morar com minhas irmãs mais velhas, quando elas se mudaram para a cidade ao terminar o Ensino Médio. Foi um processo de transição”, diz.

Ainda na 1ª série, o jovem passou a fazer parte do Grêmio Estudantil, assumindo a função de secretário de Regimento Acadêmico, dando suporte à gestão escolar com sugestões para tornar o ensino mais atrativo. Nesta época, preparou e ministrou uma aula de História aos colegas, quando muitos estavam com dificuldades para acompanhar a disciplina.

Entre as várias novas experiências, a que mais chamou a atenção de Rogério foi o projeto Jovens Embaixadores. “Fui apresentado por um amigo, que sabia do meu gosto pelo inglês. Ele disse: ‘por que você não tenta?’ Então eu fui buscar informações e vi os requisitos (ser de baixa renda, ter boas notas, ser engajado em projetos sociais e saber a língua inglesa). Fiz a inscrição, mas não passei nem na prova escrita, que é a primeira fase”, comenta.

Decidido a tentar de novo, Rogério preparou-se melhor, aprimorou o inglês e engajou-se em causas sociais. Criou o próprio projeto de voluntariado, chamado English for Kids, que proporcionava aulas de inglês gratuitas para crianças de escolas públicas. “Aos sábados, eu e uma colega dávamos aula para crianças de comunidades vulneráveis da sede. Também, criei o English Immersion Group, com aulas na própria EEEP, no horário do almoço”, pontua.

Inscreveu-se novamente no PJE, quando cursava a 2ª série e, desta vez, passou na prova escrita. “Então, vim a Fortaleza e conheci gente de todo o Ceará. Foi uma experiência que abriu muito a minha mente”, considera. Embora não tenha passado na prova oral, Rogério sabia que ter chegado até ali já era um marco, e resolveu insistir novamente. Seria a terceira e última tentativa, pois estava chegando ao ano de conclusão do Ensino Médio.

Maratona

No início de 2018, antes da abertura de vagas para o PJE, Bié inscreveu-se no programa Brazilian Bootcamp – Acampamento Brasileiro de Lideranças. Trata-se de uma ação realizada pela Academia de Lideranças da América Latina, em São Paulo, no período de férias escolares de julho, com duração de oito dias. O objetivo é desenvolver nos jovens habilidades e competências necessárias para se tornarem líderes a serviço da sociedade, potencializando a sua capacidade de gerar mudanças positivas nas comunidades em que vivem.

Para concorrer, era preciso fazer redações em inglês e responder a uma entrevista por videoconferência. “Recebi um e-mail dizendo que fui aprovado, sendo o único cearense, com bolsa quase total, e viajei sozinho de avião pela primeira vez, até São Paulo, onde fiquei junto com jovens de diversas realidades sociais. Visitamos comunidades carentes e tivemos um jantar com empreendedores sociais do mundo todo. Ao voltar, estava muito mais inspirado”, relembra.

E foi justamente na 3ª série, em meio à pressão da preparação para o Enem, às exigências da educação profissional – com estágio curricular na cidade de Forquilha – além das atividades do grêmio estudantil, que o jovem conseguiu aprovação para ser um Jovem Embaixador. Foram 17 mil candidatos inscritos para 50 vagas. Estava garantida a viagem de intercâmbio aos Estados Unidos, para dali a poucos meses. “De repente, tive que fazer passaporte, fiquei conhecido na cidade, minha vida mudou de forma radical. E a ficha só caiu quando cheguei da viagem”, ressalta.

O programa durou três semanas, ao todo. Os primeiros três dias foram na cidade de Brasília-DF, onde jovens de todo o Brasil fizeram o processo de integração e preparação. Finalmente, no dia 12 de janeiro de 2019, todos embarcaram para Washington, a capital estadunidense. “Ficamos lá por uma semana, participando de muitas atividades voltadas ao protagonismo e ao empreendedorismo social. Na semana seguinte, nos dividimos em quatro grupos, que foram para cidades diferentes. Meu grupo foi para Louisville, no estado de Kentucky. Visitamos ONGs, fizemos trabalho voluntariado, e fiquei na casa de um casal de indianos. Senti-me parte da família. Foi uma experiência cultural única, e até hoje mantenho contato com eles”, salienta.

Mesmo com a agenda movimentada, Rogério conta, ainda houve tempo para brincar na neve, outra vivência considerada marcante por ele, que até bem pouco tempo atrás só tinha como referência o dia a dia sertanejo.

Na última semana do intercâmbio, todos encontraram-se novamente em Washington, cada um com a missão de criar um projeto para ser aplicado no Brasil. “Meu projeto se chama Oportuniza Ceará, que consiste em compartilhar minha história, para inspirar outros jovens que sequer sabem que essas possibilidades existem”, explica. A propósito, ao longo da viagem, sempre que havia visita a instituições sociais e escolas e era preciso explanar sobre o PJE, Rogério era o escolhido pelos colegas para fazer a apresentação, pela forma espontânea de se expressar.

Suporte

Quando entrou na Escola Profissional, Rogério Bié escolheu o curso técnico de Logística. Ele lembra que a experiência possibilitada pelas aulas teóricas, assim como a vivência profissional do estágio, possibilitaram-lhe melhor compreensão do mundo e auxiliaram para que se tornasse desinibido, interativo e proativo. “Aprendi sobre regras de comportamento e administração do tempo, por exemplo. Foi um conhecimento para a vida”, destaca.

O jovem não esquece da motivação recebida pelos pais, que apesar do pouco grau de instrução escolar (nenhum dos dois concluiu o ensino fundamental), alimentaram o sonho do filho. A gratidão também se estende aos professores e gestores da escola. “Recebi muito incentivo. A Seduc também (Secretaria da Educação) sempre me ajudou, antes, durante e depois da participação no programa”, conclui.

Na faculdade de Jornalismo, Rogério revela o interesse por uma linha de atuação que ultrapasse fronteiras e que esteja ligada à área da educação. “É assim que eu me retrato trabalhando”, diz. Atento às oportunidades de programas de intercâmbio, o estudante já foi aprovado para um programa de verão, na Carolina do Norte, nos EUA, pelo período de duas semanas, em julho deste ano.