Todo dia é dia de índio: A educação intercultural das escolas indígenas
18 de abril de 2019 - 09:10 #Ceará #dia do Índio #educação #povos indígenas
André Victor Rodrigues - Texto
Davi Pinheiro e Thiara Montefusco - Fotos
Ceará conta com unidades educacionais diferenciadas para a formação escolar dentro das comunidades indígenas. Nesta última matéria especial, é apresentada a modalidade de educação básica que valoriza as identidades étnicas dos povos
Todo dia é dia de índio reafirmar sua luta por direitos. E um deles é ter educação escolar específica, diferenciada e intercultural. A Educação Escolar Indígena, aplicada a recuperar memórias históricas, reafirmar identidades étnicas, valorizar línguas e ciências indígenas, como também garantir aos povos o acesso a todos os conhecimentos do ensino convencional. Por meio das escolas indígenas, o índio desde cedo alicerça o conhecimento para defender suas pautas e se inserir aonde quiser estar na sociedade.
No Ceará, são desenvolvidas ações de apoio à implementação da educação escolar para todos os povos indígenas que se levantam no Estado. Segundo a Coordenadoria da Diversidade e Inclusão Educacional/Educação Escolar Indígena, da Secretaria da Educação (Seduc), atualmente são 39 unidades estaduais espalhadas por 16 municípios. No ano passado, foram 7.186 alunos matriculados, entre Educação Infantil, Ensino Médio Regular e Educação de Jovens e Adultos (EJA).
A aprendizagem
Exemplo desse formato educacional pode ser visto em Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza, na Reserva do Povo Indígena Pitaguary. Por lá se encontra, desde 2002, a Escola do Povo Pitaguary, inserindo estudantes da creche até o 9º ano na didática que envolve aprendizados sobre a cultura deste povo e as disciplinas que constam na educação básica.
“Aqui na escola indígena nós trabalhamos baseados na nossa cultura e também com o currículo pedagógico de escolas convencionais, pois quando nossos alunos saem daqui eles concorrerão com outros alunos e para isso precisam estar preparados para o mundo lá fora, mas sempre carregando a consciência de sua identidade”, explica a diretora da escola, Joana D’arc Araújo, que assim como todos os funcionários da instituição de ensino, é integrante da comunidade indígena.
Na unidade escolar presente na reserva, os alunos participam ativamente de várias atividades que remetem às práticas dos índios, como por exemplo aulas de toré (ritual que une dança e religião), noites culturais, jogos indígenas, ritos em torno da fogueira, trabalhos com artesanato e o processo de alfabetização voltado à educação indígena. “Estamos entre os primeiros em nível de alfabetização, sempre utilizando textos indígenas que educam acerca da nossa cultura”, enfatiza Joana.
Além de comemorar o fato de os alunos abraçarem toda a educação sobre a cultura, história e tradições do povo Pitaguary, a diretora também fala com orgulho sobre os resultados pedagógicos da escola. Os alunos da escola indígena em Maracanaú tem se destacado com boas notas em todas as disciplinas e se destacado diante de outras escolas que não são indígenas.
“Não é porque nós somos índios que não temos capacidade de estar concorrendo por melhores resultados dentro do Ensino Fundamental e do Ensino Médio com outros alunos. Em 2015, por exemplo, a nossa escola tirou o 1º lugar no Prêmio Escola Nota 10 (do Governo do Ceará)”, recorda. Em média, a unidade educacional recebe 175 alunos matriculados por ano.
O Ensino
Todos os professores da escola são formados por magistério indígena e convencional. Todos são índios. O núcleo gestor é indígena, assim como todos os funcionários. No caso da Escola do Povo Pitaguary, o quadro pedagógico é composto por 15 professores e seis funcionários do Conselho Escolar.
Professor de Português, Rafael Braga se orgulha de lecionar suas aulas com a satisfação de quem contribui para o fortalecimento de sua comunidade. Ele defende que trabalhar o ensino de forma diferenciada para os índios significa também apresentar matérias escolares convencionais sempre em constante diálogo com os conhecimentos indígenas.
“A gente vê a questão de trazer a cultura para dentro do currículo, nas matérias convencionais. E por que não colocar a nossa cultura dentro do ensino do Português? Trabalhamos o Tupi, a história, o resgate da língua materna e, principalmente, o resgate das nossas origens. Temos pesquisas com os nossos anciões para um trabalho constante de resgate de tradições e da língua materna para usarmos dentro do nosso cotidiano”, conta.
A educação por meio do ensino das disciplinas contribui, deste modo, para a afirmação dos povos indígenas do Ceará como sujeitos de direito. Com o direito à escola, à aprendizagem, aos conhecimentos universais e àqueles que fortaleçam a sua pluralidade cultural.
Rafael relata que é tarefa do ensino indígena também ajudar a reconquistar o sentimento de pertencimento às origens em famílias que acabam por perder diante dos preconceitos e da exclusão.
“Hoje ainda existe o não aceitar, o não se identificar índio. Porque ainda hoje a sociedade ainda é muito preconceituosa. Então muitos alunos trazem a visão de não se reconhecer desde casa. O nosso papel aqui é oferecer o despertar da cultura que a criança já traz de berço. Elas ficam curiosas, passam a investigar e querer aprender mais, e acabam levando lições para as suas próprias famílias.”
Os alunos
No intervalo das aulas, o estudante do 5º ano Carlos Eduardo Braga, 10, corre para o ginásio. Coloca o cocar e se posiciona frente ao tambor pronto a iniciar a percussão. Fazer uma das coisas que mais gosta na escola indígena: tocar para a realização de danças indígenas. “Eu gosto muito de praticar o toré. Aprendi a tocar observando os mais velhos”, fala sorrindo.
E logo explica para os desavisados do que se trata: “O toré é um ritual. Fazemos uma roda, no meio tem o responsável por tocar o tambor, e os outros ao redor devem segurar o amará. Quando começar a música, começam a arrodear e cantam para realizar a atividade”.
Carlos também adora confeccionar itens tradicionais do seu povo, como os maracás e os cocares. “A gente coloca a semente dentro de um coco para fazer a maraca e tocar”, resume o tutorial do primeiro item.
Além das tradicionais atividades do seu povo, ele também gosta muito de estudar as matérias de educação básica mostradas em sala. É admirador das ciências exatas. Amante da matemática, dos cálculos e números. E se dedica neste caminho duplo de descobertas interiores e exteriores.
Educação e o movimento
A educação indígena compreende um vasto campo de análise, visto que há singularidades entre cada um dos povos presentes no Estado. Segundo o doutorando em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Étnicas da Universidade Federal do Ceará, Ronaldo Queiroz, os povos indígenas guardam pontos em comum e diferentes e é preciso compreender o desenvolvimento de seus planos pedagógicos de modo muito autônomos.
“Existe um conceito chave para cada povo que é a autonomia. A autonomia organizativa e a autoafirmação. A identidade indígena é compreendida como sendo uma autoafirmação e conjuntamente é uma dualidade: afirmação e reconhecimento coletivo daquele povo indígena”, expõe. Ainda segundo o antropólogo, muito ainda se debate para que haja avanços nas avaliações nacionais feitas sobre a educação indígena, no intuito de que ela também seja tratada como diferenciada também na hora de ser avaliada pelos índices nacionais.
De modo geral, a importância de escolas trabalhando de forma diferenciada junto às comunidades de índios significa muito para a luta indígena em todas as suas questões de busca por direitos. “O movimento indígena concebeu a educação indígena como sendo um processo de formação de novas lideranças para continuar lutando tanto pela demarcação dos territórios como pela garantia dos direitos previstos pela constituição”, finaliza Ronaldo.
Saúde
O Ceará também conta com ações específicas na área da Saúde voltadas às populações indígenas no território estadual. De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, existem atualmente 22 equipes multidisciplinares de Saúde Indígena que fazem o acompanhamento dos povos, ofertando atenção básica à saúde.
A Sesai é responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Sistema Único de Saúde (SUS). O SasiSUS está organizado nas terras indígenas e tem como referência a rede de serviços do SUS.
Cultura
A partir da constituição do Comitê Gestor de Políticas Culturais Indígenas, em 2017, a Secretaria da Cultura (Secult) busca ampliar o espaço para a valorização da cultura indígena no Estado. O Comitê é uma instância consultiva e deliberativa de planejamento, articulação, gestão compartilhada, controle social e de assessoramento ao Conselho Estadual de Políticas Culturais do Ceará.
A cultura indígena ganhou espaço na programação de eventos – como a Bienal Internacional do Livro do Ceará e o Festival Música da Ibiapaba – e de equipamentos públicos estaduais, como a Escola Porto Iracema das Artes e o Museu do Ceará. Além disso, os saberes e fazeres indígenas estão salvaguardados através da política de patrimônio imaterial da Secretaria da Cultura. Também encontram-se ativos Mestres e Mestras da Cultura do Estado como a Cacique Pequena, da comunidade Jenipapo-Kanindé de Aquiraz; o Pajé Luís Caboclo e o Cacique João Venâncio, ambos da comunidade Tremembé, em Itarema; além da Pajé Dona Raimunda, da comunidade Tapeba de Caucaia e do Cacique Sotero, da comunidade Kanindé, de Aratuba.
O Dia do Índio
A ser celebrado na próxima sexta-feira (19), o Dia do Índio foi oficializado no Brasil em 1943, durante governo do presidente Getúlio Vargas. A data tem por objetivo lembrar a todos da importância de se preservar a identidade, dos direitos e a cultura das populações indígenas no país.
O dia 19 de abril foi escolhido no calendário em alusão ao Primeiro Congresso Indigenistas Interamericano, realizado em Patzcuaro, no México, em 1940. Há também o Dia Internacional dos Povos Indígenas, criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e celebrado no dia 9 de agosto.
O material especial “Todo dia é dia de índio” refletiu, ao longo de três dias, através de reportagens, ensaios fotográficos e vídeo, sobre o papel do índio na sociedade e as estratégias para reafirmar lutas históricas, ocupar espaços e diminuir preconceitos.
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